VIÚVA CASA-SE COM NETO DO MARIDO
No dia 20 de julho de 1839, o Bispo de Olinda, D. João da Purificação Marques Perdigão, em sua primeira e única visita pastoral ao Ceará, pernoita no Boqueirão de Baixo, localidade situada no município de Russas, casa do tenente coronel José Leão da Cunha Pereira, homem rico e respeitado. Passa aí o dia imediato, ouve missa e crisma várias pessoas. Pernoita no dia 21 e prossegue no dia seguinte sua viagem em demanda de Fortaleza. D. Perdigão jamais poderia imaginar que pouco antes de completar 1 ano de sua visita, aquele local em que pernoitou seria cenário de um dos crimes mais cruéis que o Ceará já presenciou. Com um agravante, involuntariamente contribuíra para o acontecimento, pois sua dispensa de impedimento para que fosse celebrado o casamento religioso entre D. Joanna Sebastiana da Rocha Pita e Joaquim Manuel da Cunha foi o estopim que deflagrou as ações criminosas. João Brígido diz que a dispensa veio do Papa, enquanto Gustavo Barroso afirma que é do Bispo a dispensa. Do Papa ou do Bispo, houve a dispensa que ultrapassou o impedimento e propiciou as núpcias. Aos fatos! Muitos anos antes, Manuel Cunha Pereira, que se tornou o potentado daquela região, casou-se e desse relacionamento nasceram vários filhos, dentre eles o tenente-coronel José Leão da Cunha Pereira. Manuel ficou viúvo e tratou de casar-se com Joanna Sebastiana da Rocha Pita, nascendo os filhos Sabino da Cunha Pereira, de gênio terrível, exaltado e soberbo, e Salvador de Locio Sblitz Cunha, perversamente engraçado. Manuel morre, deixando Joanna viúva jovem. Tempos depois, surgiu o romance entre a ainda jovem viúva Joanna e o jovem capitão Joaquim Manuel da Cunha. Mas havia um empecilho canônico entre os dois. O Capitão Joaquim era neto de Manuel Cunha Pereira, o falecido marido de Joanna. Obtida a dispensa, houve o casamento sob o protesto dos filhos da viúva. João Brígido, com o seu modo cáustico de narrar, diz que na antiguidade as famílias ricas e afidalgadas do sertão casavam, como os gados, quase os pais com as filhas; tudo por amor dos haveres e da tribo! A parentela se dividiu. A maioria ao lado do casal Joanna-Joaquim Manuel. Poucos, com os filhos da viúva, Sabino e Salvador, e seu irmão paterno José Leão. Iniciou-se a luta. Joaquim Manuel foi morto em fins de 39. Joanna, viúva, ameaçada em sua fortuna e na vida de um filho que tivera de Joaquim, abandona a casa e procura refúgio. A vingança foi terrível. À frente dos vingadores estava Francisco José de Sant´Anna, conhecido por Pataca, cunhado de Joaquim Manuel. Pataca e seu bando ataca a casa de José Leão na madrugada do dia 18 de junho de 1840. Com exceção de José Leão e de sua mulher Maria Gomes, que se refugiaram na estribaria, os demais, considerada a inferioridade numérica frente aos assaltantes, permaneceram na casa e procuraram se abrigar em um quarto de paredes reforçadas e portas da maior resistência. Maria Gomes, antes de procurar abrigo na parte externa da casa, no intuito de proteger os que ficaram no quarto aparentemente seguro, lançou as chaves da porta em um pote d´agua. No interior do quarto encontrava-se uma pesada mala contendo munições e que foi colocada ao pé da porta para reforçar a segurança. Os vingadores derrubaram as portas de acesso à casa; ao constatarem que Sabino e os demais estavam no quarto reforçado, dentre os assassinos ergueu-se uma voz: “Façamos, como aos caitetús...venha lenha!”. Desmancharam uma cerca e encostaram a madeira na porta e atearam fogo. Só quando as labaredas começaram a crepitar, Sabino e outros tentaram reagir, mas não conseguiam sair da prisão involuntária. Num momento...e eram pouco mais de 6 horas da manhã do dia 18 de junho de 1840, um medonho estampido se fez ouvir uma légua em derredor da fazenda Boqueirão. O fogo, que tinha fendido a porta, comunicara-se à mala, e esta explodiu, levando pelos ares o pesado teto. No recinto abrasado, arrimadas às paredes do fundo, seis figuras humanas em carvão, algumas com os bacamartes entre as pernas. A nenhuma se podia ligar ao nome, tão desfiguradas e reduzidas estavam; apenas Sabino foi reconhecido por um brilhante que trazia na mão. Já à luz matutina, todos os esconderijos devassados e José Leão foi descoberto posto que estava escondido sob o corpo de Maria Gomes. Pataca, nada tendo contra ela, colocou a arma sobre os ombros de Maria e desfechou um tiro em José Leão, deitando-o por terra. Atiraram-lhe também os cunhados de Pataca, Manoel de Holanda da Cunha e José Francisco da Cunha; e este com o cabra Cabaceira, o acabaram, sangrando-lhe o pescoço, conclui João Brígido. Após a terrível cena, os assassinos passaram ao saque.
OS “ALFINETES” DO PADRE

14 DE DEZEMBRO DE 1801 – Francisco Bento Maria Targini, Escrivão da Provedoria da Fazenda no Ceará, escreve carta ao Padre Elias Pinto de Azevedo, morador em Almofala, nos seguintes termos: “O documento que Vm. me remetteu para cobrar a sua côngrua do tempo que diz servio de Vigário dessa povoação de d´Almofala, não é bastante para o dito effeito, visto que Vm. servio sem as competentes provisões. A respeito de Vm. me offerecer 50$000 para os alfinetes de minha mulher, sua criada, se me offerece dizer-lhe, que ella quando veio de Lisboa, trouxe já os alfinetes que lhe eram precisos para se pregar no Ceará, e que eu desculpo esta sua ouzadia attendendo a sua idade, demência e ao costume com que até a minha chegada se estava de se decidirem semelhantes questões por dinheiro, por ter sido aqui a venalidade companheira inseparável dos Magistrados e Fiscaes da Real Fazenda; o que Vm. sabe ser um crime horroroso e imperduavel em semelhantes homens”, transcreveu o Barão de Studart. Targini estava com a razão ao rejeitar a pretensão do Pe. Elias, pois este somente teria direito a receber a côngrua caso tivesse sido nomeado pároco colado; os registros confirmam que o Pe. Elias exerceu seu ministério como vigário encomendado e nessa condição sua remuneração era de responsabilidade dos seus fregueses. Este o principal motivo pelo qual os vigários encomendados viviam em situação de extrema penúria, pois os fiéis não estavam em condições de assumir as despesas dos vigários. O termo “alfinetes”, empregado pelo Padre Elias, tinha sua origem nas leis de 17 de agosto de 1761 e 4 de fevereiro de 1765, que estabeleceram o PACTO DOTALICIO, cumulativamente com o CONTRATO DOTAL. Pelo DOTALICIO a mulher tinha, no caso de viuvez, o direito de receber certos bens, frutos, pensões ou mesadas para seus ALFINETES. Esclarece Candido Mendes de Almeida, nos comentários ao Título XLVII do Livro Quarto das Ordenações do Reino, que ALFINETES tinham o significado de APANAGIOS e ALIMENTOS. Targini foi figura controversa, mas de reconhecida probidade; foi galgado ao cargo de Tesoureiro Mor do Real Erário do Reino do Brasil e criado Barão de São Lourenço por Decreto de 17.12.1817 e por outro de 3 de maio de 1819, Visconde do mesmo nome.