CEARENSE MODIFICA JURISPRUDENCIA
O fato, narrado no livro Escravos & Magistrados no Segundo Império, de Lenine Nequete, aconteceu no Pará, mas o agente principal é o cearense Vicente Alves de Paula Pessoa. Paula Pessoa era filho do famoso Senador Francisco de Paula Pessoa, ingressara na magistratura e atingira o posto de Desembargador na Relação do Pará. Foi notável jurista no Império com acreditadas obras publicadas. Aposentou-se com honras de Ministro do Supremo Tribunal de Justiça, antecessor do Supremo Tribunal Federal. Posteriormente foi escolhido Senador do Império pela Província do Ceará. Aos fatos: a Lei nº 2.040, de 28 de setembro de 1871, diz : "Art. 4º. É permitida ao escravo a formação de um pecúlio com que lhe provier de doações, legados e heranças, e com o que, por consentimento do senhor, obtiver do seu trabalho e economias". E acrescenta o § 2º do mesmo artigo: "O escravo que, por meio de seu pecúlio, obtiver meios para indenização do seu valor, tem direito à alforria". A lei é muita clara, mas os interesses em jogo determinavam uma cambiante jurisprudência. No caso, arbitrara-se em 1:000$000 a quantia para que se passasse carta de liberdade a Lídia, escrava do Visconde de Arari, o qual, contestando, alegava a má origem do pecúlio. A sentença de primeira instancia reconhecera o direito da autora, mas o Tribunal provera recurso e mandara que a escrava voltasse ao cativeiro. Coube ao Desembargador Paula Pessoa, em 28 de março de 1876, pronunciar-se como Relator dos Embargos opostos e modificar a posição da Relação (nome antigo de Tribunal de Justiça) com seu Voto vencedor. O voto modificou a jurisprudência dominante e influiu na posição adotada a seguir pelo Supremo Tribunal de Justiça. Afirma Paula Pessoa: "A libertanda apresentou-se em juízo, requerendo para ser ouvido o seu senhor com vênia, a fim de ser ela libertada pela quantia de 800$000, que recolhera ao cofre da Tesouraria Geral. Nomeados árbitros e um terceiro pelo juiz, acordaram dois deles que a escrava poderia ter carta de liberdade por 1:000$000, que era o seu valor, e o juiz, neste sentido, mandou passar a carta. O Visconde apelou e alegou que o pecúlio tinha má origem, que a escrava era de má conduta, tanto que ele a havia desterrado para o seu engenho do rio Arari, e que o precedente seria de maus efeitos por causa de seus outros escravos. O curador nomeado à escrava disse o que era possível a favor desta e contesta a má origem do pecúlio até porque a alegação neste sentido é sem base. Respeita ele o direito de propriedade, mas clama pelo que tem Lídia. A Relação, em acórdão, reformou a sentença do juiz de órfãos, mandando voltar Lídia para a escravidão. O curador embargou o acórdão e é o que se discute. É nossa opinião sempre constante que, desde que o escravo apresenta o seu justo valor, deve ser libertado, e isto não repugna ao preceito do art. 4º da Lei 2.040, de 28 de setembro de 1871, e arts. 48 e 56 do Regulamento nº 5.135, de 13 de novembro de 1872, e assim o consignamos em a nota 50 de nosso trabalho sobre a dita lei, desde que se não prova que há um crime na aquisição do pecúlio ou um fim de desacato à pessoa do senhor. No caso presente, nada disto, e nem mesmo que a pessoa que forneceu a quantia para a liberdade da escrava era ou é seu amante, embora se alegue, mas sem provas, a não ser por conjeturas. Sei que muitos querem restringir o preceito do parágrafo citado, argumentando com o art. 57, § 1º, do Regulamento nº 5.135, de 13 de novembro de 1872, como se este pudesse alterar a lei, cuja interpretação é benéfica à liberdade, e não poderia deixar de sê-lo, até porque, mesmo no tempo em que vigorava o despotismo, já o Alvará de 16 de janeiro de 1756 dizia que a liberdade é inestimável e de direito natural, (...) e que são mais fortes e de maior consideração as razões que há a favor dela do que aquelas que podem fazer justo o cativeiro, e isto se acha no Alvará de 16 de janeiro de 1773. E se quiséssemos remontar-nos a tempos mais afastados, citaríamos a Lei de 1º de abril de 1680, que ordena a proteção à causa da liberdade, o que aliás era estudado no Direito Romano – libertas omnibus rebus favorabilior. E é da Ord. L. 4º, T. 11, § 4º, que em favor da liberdade, muitas coisas são concedidas contra as regras gerais do direito, o que é consagrado pelo mesmo Direito Romano no D., L. 4º, T. 5º., § 10, quando estabelece que a bem da liberdade muitas coisas se determinam contra o rigor do direito – multa contra júris rigoris pro libertate constituta; e isto mesmo se pode ver na Instituta, L. 2º, T. 7º, § 4º. E a jurisprudência pátria, ao depois de constituídos nós nação livre, tem numerosos e abundantes arestos para o caso presente, e para não alongar-nos basta citar as Revistas do Supremo Tribunal nº 5.773 de 9 de julho de 1859, e a de 6 dezembro de 1862. É inadmissível a alegação de que há propósito de desmoralizar-se o senhor da escrava; porque ninguém concebe que uma misera criatura, cuja aspiração maior é dizer-se livre, possa arcar com o seu senhor, que no caso presente é um cavalheiro de alta posição social e cercado de respeito e consideração. Ninguém mais do que nós rende preito ao direito de propriedade, consagrado por todas as sociedades civilizadas e escrito em nosso pacto fundamental; mas também ninguém mais propugna pela liberdade em todos os sentidos do que nós. Quando não há ofensa ao direito de terceiro, como no presente caso, em que a escrava apresenta o seu justo valor; quando a oposição por parte de uma desgraçada é legitima, não a coarctemos; nós, que tão orgulhosos somos na liberdade debaixo de diversos pontos de vista, não podemos e não temos o direito de tolher o desejo de quem quer sair da escravidão e dispor de si como coisa sua. Propugnando pelo direito de uma infeliz que julgamos justo e legítimo, longe de nós a ofensa a alguém; é tal a conveniência que procuramos sempre guardar em todas as relações da vida, com especialidade ao que diz respeito às funções de juiz, que cautelosamente nos abstemos de empregar uma palavra amarga, ou entrar em detalhes que poderiam dar à questão um caráter odioso. No cargo que nos foi confiado, a calma e a imparcialidade nos parecem imprescindíveis, tanto mais quando o direito e a justiça se impõem do modo o mais natural, sem ser necessário as paixões que irritam e perturbam o espírito. Nós, juízes, temos de decidir entre uma desgraçada e o seu senhor, que se acha cercado de tudo aquilo que ergue o homem aos seus próprios olhos, e me parece que a hesitação não é possível quando, no caso presente, os ditames do coração se conformam com a justiça, que antes de tudo protege a causa do desgraçado, como a mais simpática aos que amam a liberdade e consideram-na como o dom mais precioso da vida. Entre uma e o outro, nos inclinamos com a lei na mão para aquela que quer ser livre e pede para gozar do bem que nós tanto apreciamos e de que lhe somos orgulhosos. Exprimindo-nos assim, acatamos e respeitamos a opinião de nossos colegas, qualquer que seja a decisão; mas nunca nos abalarão na nossa, que é o fruto da meditação e do sentimento de que somos possuídos, quando se trata de um deserdado da sorte. Votamos, pois, para que seja reformado o acórdão embargado, mantendo-se a sentença de primeira instância, que mandou passar carta de liberdade, pela quantia de 1:000$000 à escrava Lídia, de propriedade do Visconde de Arari".

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